Em Minas Gerais e Goiás, procuradores fizeram recomendações a determinados municípios, enquanto no Piauí foi aberta ação civil pública em caráter liminar
Procuradorias em ao menos três estados se movimentaram para ampliar o uso de medicamentos para tratamento de sintomas iniciais de Covid-19, incluindo cloroquina e hidroxicloroquina.
Em Minas Gerais e Goiás, procuradores fizeram recomendações a determinados municípios, enquanto no Piauí foi aberta ação civil pública em caráter liminar.
Os procuradores de MG e GO citam a nota publicada pelo Ministério da Saúde no dia 20 de maio, com indicações de aplicação de hidroxicloroquina em pacientes com sintomas leves da Covid-19.
O documento levou o Gabinete Integrado de Acompanhamento da Epidemia Covid-19, do Ministério Público Federal em Brasília, a questionar a pasta sobre as diretrizes para a recomendação
O objetivo do gabinete é que as informações instruam procedimentos adotados pelas Procuradorias em todo o país.
O gabinete chama a atenção para a baixa capacidade de testagem no país, indaga sobre como o governo federal pretende garantir que os médicos possam prescrever a hidroxicloroquina no início da doença e cita exames complementares considerados relevantes para o acompanhamento dos pacientes.
Nesta segunda-feira (25), a OMS (Organização Mundial da Saúde) disse que vai suspender os testes que vinha conduzindo em 18 países com a hidroxicloroquina e avaliar sua segurança antes de retomá-los, mas o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) disse que irá manter a orientação sobre o medicamento.
Para pedir uso precoce de hidroxicloroquina, os documentos das Procuradorias em MG e GO misturam relatos anedóticos, informações falsas, links de sites que apoiam o governo Bolsonaro, estudos contestados e in vitro (só em células) e ignoram estudos publicados em revistas científicas respeitadas mundialmente e entidades científicas brasileiras.
Microbiologista e presidente do Instituto Questão de Ciência, Natália Pasternak ressalta que ainda não há comprovações de benefício da cloroquina no tratamento ou prevenção da Covid-19.
Isso é consenso também entre associações científicas da linha de frente no enfrentamento à pandemia –caso da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, da Sociedade Brasileira de Infectologia e da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia–, que defendem que o medicamento só seja usado em pacientes graves ou críticos sujeitos a monitoramento constante e, preferencialmente, em protocolos de pesquisa.
Artigos em revistas científicas como o British Medical Journal (BMJ), The New England Journal of Medicine e Lancet, lembra Pasternak, mostram que, no uso contra o novo coronavírus, o remédio pode aumentar risco de problemas cardíacos.
“Relatos de casos não são evidências científicas. A gente tem artigos sérios, publicados em boas revistas, que são, sim, evidências e estão sendo desconsiderados. O que chama a atenção é essa escolha seletiva”, diz ela sobre a recomendação do MPF em Minas.
As duas recomendações citam Didier Raoult, infectologista francês cuja pesquisa deu início à questão da cloroquina na pandemia, mas acabou contestada pela revista que a publicou. No estudo citado pelo MPF, pesquisadores analisaram dados de pessoas com Covid-19 tratadas com hidroxicloroquina e azitromicina, mas não tinham um grupo de controle para comparação, o que impede conclusões.
Na defesa do uso precoce da hidroxicloroquina, o MPF de Minas cita o Hospital Regional Tibério Nunes, em Floriano, no Piauí, como suposto exemplo de resultado satisfatório. O coordenador do hospital, contudo, desmentiu a informação de que a droga seria responsável por êxito no tratamento dos pacientes no local.
O documento do MPF nos dois estados também menciona suposto estudo conduzido pela rede de planos de saúde Prevent Senior para dizer que operadoras têm feito uso precoce da hidroxicloroquina
Até o momento, porém, a exceção de entrevistas de executivos da Prevent, nenhum dado referente aos resultados do protocolo adotado pela empresa foi disponibilizado.
A operadora de saúde chegou a divulgar um suposto estudo; porém, além de ser inconclusivo, ele não tinha recebido autorização do conselho de ética e havia indícios de fraude nos dados divulgados.
Um recente estudo publicado na BMJ também não encontrou evidências de que o uso da droga em pacientes com quadros de leve a moderado traga benefício para a eliminação do vírus.
“Não temos medicamento para a Covid-19. O que temos são medidas não farmacológicas, distanciamento social, isolamento físico e medidas de higiene”, diz Pasternak.
O documento de Minas Gerais, assinado pelos procuradores Wesley Miranda Alves e Cleber Eustáquio Neves e pelo promotores Maria Carolina Silveira Beraldo e Fernando Rodrigues Martins, recomenda disponibilização para tratamento precoce da doença para 46 municípios. A Promotoria disse que a recomendação não reflete o posicionamento do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa da Saúde.
O protocolo atual adotado em Minas indica o uso da cloroquina para pacientes graves, com base em orientações médicas, seguindo o Ministério da Saúde. A Secretaria Estadual de Saúde diz que analisa um novo protocolo e que a ampliação para casos leves é um dos pontos em discussão
Ainda segundo a gestão Romeu Zema (Novo), entre o fim de março e maio, o estado recebeu 85 mil comprimidos de cloroquina 150 mg via Ministério da Saúde, para distribuição aos municípios, conforme demanda. O medicamento, usado para tratamento de malária e lúpus, já era disponibilizado no SUS, mas a remessa aumentou com a pandemia.
“Essas remessas foram enviadas pelo Ministério da Saúde sem prévia programação realizada pela SES-MG e foram definidas com base nos casos confirmados da Covid-19, conforme dados nos boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde”, diz a pasta.
Em Goiás, a recomendação assinada por Ailton Benedito, procurador que chegou a ser cogitado para Procurador Geral da República e voz conservadora no MPF, pede a disponibilização dos medicamentos indicados pelo Ministério da Saúde para 119 municípios –ao todo, o estado tem 246.
No Piauí, uma ação civil pública assinada pelo procurador regional dos direitos do cidadão, Kelston Pinheiro Lages, pedindo que a União fosse obrigada a adotar medidas para o uso de hidroxicloroquina e outros medicamentos na fase inicial da doença na rede pública, foi apresentada em 13 de maio. Após a nota do Ministério da Saúde, a juíza entendeu que o pedido havia perdido seu objeto.
Fonte: FolhaPress