A população está sete vezes maior com a presença de turistas e as festas ilegais têm ocorrido como se fossem, na verdade, permitidas
Basta escurecer e o movimento de pessoas em direção à beira do rio e à pracinha da igreja começa em Caraíva, distrito do município de Porto Seguro, no sul da Bahia, onde não vivem mais de mil pessoas. De lá, só saem quando o dia surge no horizonte, deixando para trás lixo da noitada de aglomeração. Diariamente, o vilarejo tem sido tomado de gente e o fluxo se repete. A população está sete vezes maior com a presença de turistas e as festas ilegais têm ocorrido como se fossem, na verdade, permitidas.
Os turistas começaram a chegar depois do Natal e só devem deixar a região depois do réveillon, entre os dias 2 e 3 de janeiro. Sem a possibilidade de viajar para o exterior, por causa das barreiras sanitárias e emissões de alertas relacionados ao crescente número de casos do novo coronavírus, o sul da Bahia parece ter sido o destino escolhido pelos viajantes mais abastados – a maioria deles vindo do Sudeste, principalmente de São Paulo. No topo da preferência, estão Caraíva e Trancoso, outro distrito de Porto Seguro, onde são registradas aglomerações em praças públicas, bares e festas privadas ilegais.
O Tribunal de Justiça da Bahia concedeu liminar que atendeu a um pedido do governo estadual para proibir “shows e festas, públicas ou privadas” em Porto Seguro. Ainda assim, os eventos acontecem. Por volta das 21 horas de 26 de dezembro, mesmo dia da determinação do TJ, policiais encerraram uma festa, chamada de Sarará, que acontecia em uma casa dentro de um condomínio de luxo em Trancoso. Eram, pelo menos, 200 pessoas na residência. O responsável fugiu, mas já foi identificado.
O não cumprimento da ordem judicial pode ser penalizado criminalmente. Os organizadores e frequentadores de festas, nesse caso, são processados por infringir normas do poder público, destinadas a impedir propagação de doença contagiosa. “Há uma superlotação aqui, e o volume policial não tem como dar conta. Houve reforço, mas o volume de turistas é muito superior”, explicou o tenente-coronel Anacleto França Silva, comandante do 8.º Batalhão da Polícia Militar de Porto Seguro. Nesta segunda-feira, 28, foi enviado reforço policial a Caraíva para coibir possíveis eventos ilegais e descumprimentos de normas.
O movimento na região está tão intenso que entre a tarde e a noite do dia 26 houve engarrafamento de jatinhos e aviões de pequeno porte nos aeroportos locais. No Aeroporto Terravista, em Trancoso, que só recebe voos particulares ou fretados, 48 aeronaves pousaram somente no sábado. Em alguns momentos, aviões tiveram de esperar liberação para continuar viagem.
‘Nós, os moradores, não conseguimos passar pela rua’
Em Caraíva, os principais pontos de aglomeração são a beira do rio e a pracinha da igreja, margeadas por bares e supermercados que não respeitam o horário de fechamento, às 23h, e mantêm as portas abertas madrugada adentro. As casas de luxo também sediam festas, como a Sarará, mas, sem contingente para fiscalizar todos os locais, os policiais precisam escolher os mais graves. Na noite do domingo, 27, Lucas Borges, de 29 anos, presidente da Associação de Nativos, precisou ir à casa de um parente e, no retorno, recalculou trajeto. Parecia carnaval no distrito.
“Os moradores já não passam mais pela rua, cortam pelos becos, porque é muito lotado, não é seguro. O som alto é ouvido a noite inteira”, contou. A chegada até Caraíva acontece via os aeroportos de Trancoso ou Porto Seguro. O resto do percurso é feito de carro. O distrito, onde a energia elétrica chegou apenas em 2007, era considerado, até então, um paraíso com praias praticamente isoladas. Na última década, descoberta por famosos e milionários, passou a ser destino certo nesta época do ano. E nem a pandemia impediu as viagens.
Os nativos temiam as consequências das aglomerações que já são recorrentes na história recente de Caraíva durante o verão e planejaram protocolos para o distrito, mas a Prefeitura de Porto Seguro não atendeu aos pedidos, segundo Borges. Como as casas de show e eventos estão fechadas, as festas ilegais e aglomerações de forma geral acontecem, muitas vezes, em praça pública, como baladas a céu aberto.
Até o momento, não houve ações policiais em festas em Caraíva, o que não significa as celebrações não tenham ocorrido, frisou o tenente-coronel França, mas que passaram à margem de queixas ou rondas policiais. Em Trancoso, foram 36 denúncias de perturbação de sossego e festas clandestinas.
A comunidade de Caraíva tinha sido fechada para o turismo, mas o acesso foi reaberto em novembro passado. Não há coleta de lixo dentro do vilarejo e os moradores precisam se virar para limpar os vestígios das noites de excesso.
Pousadas também promovem festas ilegais
“Tem até pousadas discutindo entre si, porque até festa dentro de pousada está acontecendo, o que traz uma situação deplorável aqui para o vilarejo”, relatou Agrício Ribeiro, de 50 anos, dono de uma pousada que optou por trabalhar com a metade da capacidade por decisão própria. As pousadas e hotéis têm liberação para funcionar com 100% da capacidade e é o que tem acontecido, na maioria delas.
Sem as casas de eventos abertas e com restrições de funcionamento, os turistas também organizam as próprias festinhas clandestinas. “Na realidade, essas pessoas que estão aqui são as pessoas que têm muito dinheiro e nenhuma educação. O perfil do turista que está aqui hoje é o perfil de quem suja, quem destrói”, complementou Agrício. Ele acredita que houve um descompasso entre o incentivo ao turismo por parte do poder público e as restrições de funcionamento impostas aos empresários. Resultado: descontrole na rua.
“A maioria das pessoas que a gente vê nas ruas são jovens. Essas pessoas vão vir para cá e ficar na pousada, em casa? Não. Vão aglomerar sem qualquer limite”, opinou Agrício. Os moradores temem uma explosão de número de infectados pela covid nesses locais. Em Caraíva, divisa com um território indígena, a preocupação ainda inclui a população originária, mais vulnerável. São 28 casos de covid-19 notificados em Caraíva e 143 em Trancoso. Em Porto Seguro, são 4,3 mil casos e 80% dos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) estão ocupados.
O Estadão tentou contato com a prefeita de Porto Seguro, Cláudia Silva Santos (PSD), mas não foi atendido. O secretário de Turismo do município, Paulo Magalhães, não quis comentar, e repassou os questionamentos para Fábio Costa, Secretário de Serviços Públicos.
“A Prefeitura sempre se posicionou contra esses eventos e estamos atentos, porque nossa posição da Prefeitura é de combater qualquer princípio de aglomeração”, disse Costa, sem comentar especificamente as aglomerações registradas nos distritos. Na noite da virada para 2021, quando são esperadas aglomerações e festas ilegais em toda a Bahia, a PM informou que reforçará, mais uma vez, a fiscalização.
Fonte: O Estado de S. Paulo