Autoridades e enfermeiros de municípios paulistas afirmam que técnica e boas seringas garantem no mínimo uma aplicação a mais
Na contramão das reclamações recentes de profissionais de saúde de municípios do país, que afirmaram ser difícil atingir as 10 doses nos frascos da vacina contra a covid-19 da CoronaVac, algumas cidades de São Paulo obtêm 11 e chegaram a 12 em recipientes similares.
O aproveitamento superior ao das doses registradas no rótulo ocorre também com o imunizante da AstraZeneca, desenvolvido em parceria com a Universidade de Oxford e fabricado no Brasil pela Fiocruz.
Em Flora Rica, Natália Lacerda Redivo Vilar, secretaria de Saúde do município, afirma que é comum as doses a mais. “Tem frasco que vem com 12, da AstraZeneca chegamos a tirar 13”, conta ela, lembrando que isso ocorreu no início da campanha de vacinação.
Atualmente, a Fiocruz distribui apenas frascos com 5 doses. Os que tinham 10 eram os primeiros lotes da vacina da AstraZeneca, importados da Índia. Em relação à CoronaVac, criada a partir de uma parceria da farmacêutica chinesa Sinovav e do laboratório brasileiro Butantan, os primeiros vidrinhos eram de dose única — hoje contêm 10. Nos dois casos, os fabricantes deixam um “chorinho”, um líquido a mais de sobra como margem de erro para eventuais perdas ou imprecisões nas aplicações.
É esse “chorinho” que ajuda a explicar por que até terça-feira (20) 82 municípios paulistas apresentavam mais de 100% de aproveitamento no ranking público do site Vacina Já do Governo do Estado de São Paulo. Em outras palavras, injetaram mais do que receberam.
Dados desatualizados
O ranking, também conhecido como Vacinômetro, não é totalmente confiável porque há uma falha na atualização. Na sexta-feira (23), a maior parte dos municípios contava com o dado de chegada de doses publicado no dia 16, enquanto o de vacinas aplicadas variava entre 21 e 22: seis dias de defasagem que distorceram as informações.
A reportagem do R7 conversou com 12 cidades que apareciam acima dos 100% no ranking e, em 11 delas, secretários de Saúde ou enfermeiros locais confirmaram que é praxe tirar um número de doses acima do que os laboratórios registram nos rótulos.
A secretária de Saúde de Flora Rica acredita que o sucesso na campanha se deve a alguns fatores importantes, que favorecem a precisão em cada imunização. “Usamos aqui uma seringa menor, da marca BD, de 3 milímetros. As mais gordinhas, com mais capacidade, dificultam a exatidão na retirada.”
Outra coisa, acrescenta, é a capacidade técnica dos responsáveis pelo manuseio das ampolas. “Temos dois profissionais de saúde que fazem a vacinação na cidade, ambos com mais de 10 anos de experiência em imunização”, diz Natália Lacerda.
Até terça-feira (20), Flora Rica, um pequeno município com cerca de 1.600 habitantes, havia recebido 678 doses e retirado 739. São 61 a mais desde o início das aplicações ou 109% de aproveitamento. Os números foram confirmados pela titular da pasta municipal de Saúde.
Em Santa Cruz da Conceição, líder do ranking, é comum os frascos da CoronaVac darem 11 doses.
O município chegou a ficar sem vacina quando a faixa etária era de 68 anos, mas pediu ajuda para o vizinho, Leme, e não precisou interromper a campanha. Hoje está vacinando pessoas com idade entre 65 e 66 anos.
A secretária de Saúde de Santa Cruz da Conceição, Regiane Cristina Ferreira Maria, diz que bons enfermeiros e técnicos conseguem tirar no mínimo 10 doses por frasco da CoronaVac. “Menos, temos orgulho de dizer que nunca aconteceu.” Lá também se usa a seringa de 3 ml.
Na terça, havia dado entrada no município de 4.500 moradores, segundo o Vacinômetro, 1.303 doses e foram aplicadas 1.513 (16,12% a mais). Na sexta-feira (23), o primeiro dado seguia em 1.303 e o segundo foi a 1.678 (28,78% acima).
Catanduva, até o início da semana, não aparecia com mais de 100% de aproveitamento, mas por causa da defasagem na atualização dos dados superou a marca na quinta-feira (22).
Natália Lourenço Costa, diretora do departamento de Vigilância em Saúde da cidade, observa que há casos, sim, de frascos com mais de 10 doses, mas também aparecem alguns com nove. “No fim das contas, vínhamos ficando perto de empatar perdas e ganhos, dava uma a mais aqui que compensava uma a menos de outro posto”, afirma.
“Na segunda-feira, estávamos, se não me engano, com 93% [de aproveitamento], agora aparecemos com 104% porque não computaram o lote que recebemos depois do dia 16”, esclarece.
Em cidades menores é mais fácil
Em todas as cidades consultadas, histórias parecidas. Após as dez doses protocolares, aplicadores notam que há líquido suficiente para pelo menos mais uma. Aproveitando a facilidade de quase sempre se tratarem de municípios pequenos, chamam um morador da fila que mora há algumas quadras e ele é contemplado antes do que esperava.
Em Ribeirão dos Índios, a enfermeira Maria Gil explica que os lotes da AstraZeneca atuais, com frascos de cinco, permitem tirar até 6 doses. Da CoronaVac, o comum é tirar 11. Com aproximadamente 2.200 moradores, a cidade tem se mantido acima dos 110% de aproveitamento.
“Como é um município pequeno, não perdemos dose e conseguimos agir rápido para chamar os moradores da fila de vacinação”, afirma a enfermeira.
O prefeito de Pedrinhas Paulista, Freddie Nicolau (PTB), afirma que viu os enfermeiros tirarem da sobra da vacina o suficiente para uma nova dose. “O próprio governo estadual havia avisado que isso seria possível se todas as doses do frasco fossem bem tiradas.”
A cidade de pouco mais de 3 mil pessoas também tem aplicado, em média, 10% a mais do que recebe.
Em Vargem Grande do Sul, um pouco maior, com mais de 43 mil habitantes, o aproveitamento é certamente acima de 100%, segundo Rosângela de Mello Barion, chefe de gabinete da prefeitura.
“No começo da campanha, a Coronavac dava até 12 doses, principalmente no período em que ela tinha 6,2 ml no frasco [atualmente são 5,7 ml]. Usamos aqui uma seringa de 1 ml, muito mais eficaz, e nossos profissionais todos têm experiência, por isso a precisão é mais fácil”, argumenta.
Vargem Grande do Sul imunizou na última semana pessoas com 62 anos. Três creches que não estavam sendo utilizadas viraram pontos de vacinação.
Há algum risco ou erro no alto aproveitamento?
A coordenadora da Câmara Técnica de Atenção à Saúde do Cofen (Conselho Federal de Enfermagem), Viviane Camargo, explica que as vacinas em frascos multidoses vêm sempre com um pouco a mais já se prevendo pequenas perdas na preparação.
“Nós notamos, desde que iniciamos a administração das vacinas contra a covid-19, que se fôssemos retirando o líquido com cuidado, se alcançássemos os 0,5 ml necessário para a imunização, sobrava pelo menos mais uma dose”, conta Viviane.
Foi por isso que o Butantan, em março, pediu para diminuir a quantidade de 6,2 ml para 5,7 ml no frasco, explica. “Com 0,5, seriam precisos 5 ml apenas para dez doses. Logo, mesmo hoje, se não houver desperdício, chegamos a pelo menos mais uma dose no caso da CoronaVac. Antes, com 6,2, muita gente chegou a comentar que tirava duas a mais.”
A coordenadora do Cofen conta que essas doses que sobravam criaram um problema no país, quando criou-se em alguns municípios a “xepa da vacina”, permitindo que pessoas fora dos grupos prioritários furassem a fila.
Viviane Camargo explica que a perda é esperada e depende da habilidade do profissional na aspiração ao medir os 0,5 ml, assim como também é normal a 11ª aplicação, desde que ela só ocorra com sobras do mesmo recipiente. “Jamais pode-se aproveitar dois frascos. Não é uma possibilidade. As vacinas possuem lotes diferentes e essa prática é incogitável.”
Ana Paula Burian, diretora da SBIm-ES (Sociedade Brasileira de Imunizações, regional Espirito Santo), acrescenta que profissionais que não conseguem retirar as doses prometidas no frasco precisam retratar o problema. “Sempre que há qualquer quantidade menor, abre-se uma apuração e esse lote é investigado”, diz.
Ela pede que a população entenda que a aspiração das doses precisa ser um trabalho meticuloso e às vezes lento. “Por isso é preciso tolerância e paciência quando se aguarda a vez na hora da vacinação. Só com cuidado se reduzem as perdas.”
O que dizem Butantan e Fiocruz
O Instituto Butantan explica que as ampolas vêm com 0,7 ml a mais para evitar que pequenas falhas comprometam as dez doses.
“É importante que os profissionais de saúde estejam capacitados para aspiração correta de cada frasco-ampola, além de usar seringas e agulhas adequadas, para não haver desperdício.”
De acordo com o Butantan, “todas as notificações recebidas pelo instituto até o momento relatando suposto rendimento menor das ampolas foram devidamente investigadas, e identificou-se, em todos os casos, prática incorreta na extração das doses nos serviços de vacinação”.
“Portanto, não se trata de falha nos processos de produção ou liberação dos lotes pelo Butantan”, reforça a nota.
O Butantan orienta os aplicadores a usarem as doses extras se forem possíveis. Mas “é essencial que tais profissionais sigam as orientações e práticas adequadas, no intuito de evitar perdas durante a aspiração da vacina”.
Explica ainda que seringas de volumes superiores (3 ml, 5ml, por exemplo), podem gerar dificuldades técnicas para visualizar o volume aspirado, “uma vez que podem não ter as graduações necessárias”.
“Outro fator decisivo é a posição correta do frasco e da seringa no momento da aspiração.”
A Fiocruz, por sua vez, informa que a vacina contra a covid-19 produzida por Bio-Manguinhos e disponibilizada ao PNI (Programa Nacional de Imunização) segue rígido processo de qualidade.
“Após o envasamento e lacre do frasco, o lote é submetido a 100% de inspeção visual automática que, entre outros parâmetros, avalia o volume de cada frasco.”
A vacina da Fiocruz/Bio-Manguinhos vem em frascos com 5 doses para administração de 0,5ml em cada pessoa.
“Aos 2,5 ml necessários para a administração das 5 doses é adicionado 0,8 ml a título de segurança, perfazendo um total de 3,3 ml por frasco”, esclarece a Fiocruz.
Fonte: R7