Eles foram os primeiros habitantes de Hokkaido, a ilha mais ao norte do arquipélago japonês — mas a maioria dos turistas nunca deve ter ouvido falar deles
“Esta é a nossa cabana de urso”, grita a mulher baixinha e vivaz por meio de um megafone de mão, enquanto seu sorriso revela as rugas profundas na testa.
Um chapéu azul estava empoleirado na sua cabeça e uma túnica curta, bordada com desenhos geométricos rosa, estava fortemente amarrada na sua cintura. Ela apontou para uma estrutura de madeira feita de toras redondas, elevada acima do solo sobre palafitas.
“Capturávamos os ursos quando filhotes, e os criávamos como membros da família. Eles compartilhavam da nossa comida e viviam em nossa aldeia. Quando chegava a hora, devolvíamos um à natureza, e matávamos o outro para comer.”
Por terem tratado bem o urso em vida, seu povo acreditava que o espírito sagrado do animal, que eles cultuavam como uma divindade, garantiria prosperidade contínua à comunidade.
Kimiko Naraki tem 70 anos, embora aparente ser décadas mais jovem. Ela é Ainu, povo indígena que agora vive principalmente em Hokkaido, a ilha mais ao norte do Japão, mas cujas terras outrora se estendiam do norte de Honshu (a maior ilha do arquipélago japonês) até Sakhalin e as Ilhas Curilas (território administrado hoje pela Rússia que é disputado pelo governo japonês) .
Os Ainu despertam há muito tempo o interesse dos antropólogos por causa de sua identidade cultural, linguística e física, mas a maioria dos turistas provavelmente nunca ouviu falar deles. Isso porque, embora tenham sido os primeiros habitantes de Hokkaido, eles foram oprimidos e marginalizados pelo domínio japonês durante séculos.
Os Ainu tiveram uma história difícil. E, embora suas origens sejam obscuras, alguns acadêmicos acreditam que sejam descendentes de uma população indígena que se espalhou pelo norte da Ásia.
Os Ainu chamavam Hokkaido de “Ainu Moshiri” (“Terra dos Ainu”), e sua ocupação original era a caça, forrageamento e pesca, como muitos povos indígenas no mundo todo. Eles viviam principalmente ao longo da costa sul mais quente de Hokkaido e faziam comércio com os japoneses.
Mas, depois da Restauração Meiji (conjunto de reformas cerca de 150 anos atrás), habitantes da principal ilha japonesa começaram a migrar para Hokkaido à medida que o país colonizava a ilha mais ao norte. E práticas discriminatórias, como a Lei de Proteção aos Ex-Aborígines de Hokkaido de 1899, deslocaram os Ainu de suas terras ancestrais para a região árida montanhosa no centro da ilha.
“É uma história muito feia”, diz Kunihiko Yoshida, professor de direito na Universidade de Hokkaido.
Forçados a trabalhar na agricultura, eles não eram mais capazes de pescar salmão em seus rios ou de caçar veados em suas terras, acrescenta. Foram obrigados a adotar nomes japoneses, falar a língua japonesa e foram lentamente despojados de sua cultura e tradições, incluindo a estimada cerimônia do urso.
Devido à ampla estigmatização, muitos Ainu escondiam sua ascendência. E os efeitos de longo prazo podem ser observados claramente hoje, uma vez que grande parte da população Ainu permaneceu pobre e politicamente marginalizada — e muito do seu conhecimento ancestral se perdeu.
Entre outras práticas nefastas, pesquisadores japoneses saquearam túmulos Ainu do fim do século 19 até a década de 1960, acumulando enormes coleções de restos mortais para seus estudos — e nunca devolveram os ossos.
Recentemente, entretanto, as coisas começaram a melhorar para os Ainu. Em abril de 2019, eles foram legalmente reconhecidos pelo governo como um povo indígena do Japão, após muitos anos de debate, o que resultou em uma avaliação mais positiva da cultura Ainu e um orgulho renovado da sua língua e origens.
Os Ainu construíram suas casas ao longo dos rios ou à beira-mar, onde a água era abundante e a salvo de desastres naturais
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“É importante proteger a honra e dignidade do povo Ainu e passar isso adiante para a próxima geração com o intuito de criar uma sociedade vibrante com diversos valores”, declarou Yoshihide Suga, porta-voz do governo, conforme publicado no jornal The Straits Times, de Cingapura.
Naraki continuou a nos mostrar Ainu kotan (a vila). Ainda sorrindo, ela aponta para uma estrutura de madeira semelhante a um armário.
“Este é o banheiro dos homens”, diz ela, rindo.
Ao lado, havia uma cabana menor no estilo de uma tenda.
“E este é para as mulheres.”
Naraki lidera tours pela vila para ensinar sobre sua cultura aos visitantes. A iniciativa faz parte do Sapporo Pirka Kotan (Centro de Promoção da Cultura Ainu), a primeira instalação municipal do Japão dedicada ao povo indígena.
Os visitantes podem conferir o artesanato Ainu, assistir a danças típicas e imaginar como era a vida ancestral deste povo, quando esta área era uma vasta região selvagem — e as pessoas viviam em comunhão com a terra.
Localizado a aproximadamente 40 minutos de carro de Sapporo, capital de Hokkaido, o centro foi inaugurado em 2003 para ensinar sobre a cultura Ainu tanto a japoneses quanto turistas estrangeiros — e disseminar sua mensagem para o mundo.
Os Ainu cultuam o urso como um animal sagrado, incorporando-o em sua arquitetura e tradições
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“As pessoas que vêm aqui para os eventos têm muito orgulho de sua cultura”, afirma Jeffry Gayman, antropólogo educacional da Universidade de Hokkaido que trabalha há 15 anos com os Ainu.
O orgulho é especialmente evidente no pequeno e bem cuidado museu do centro, onde artefatos Ainu, como roupas e ferramentas tradicionais, são cuidadosamente exibidos.
No andar de cima, há salas onde os visitantes podem participar de oficinas de bordado Ainu ou aprender a fazer o tradicional instrumento musical Ainu mukkuri (um berimbau de boca de bambu). Ao organizar esses eventos, os membros da comunidade são capazes de educar o resto do mundo sobre sua história e situação.
“Se eu tento falar com as pessoas sobre os direitos e empoderamento dos Ainu, ninguém se interessa. Mas quando as pessoas veem nossa dança ou música, ficam interessadas em aprender mais sobre nós”, explica Ryoko Tahara, ativista Ainu e presidente da Associação das Mulheres Ainu.
Embora este centro seja um passo significativo para o compartilhamento da cultura Ainu a nível nacional e internacional, ninguém mora aqui. A vila é uma réplica que mostra às pessoas como era a vida ancestral dos Ainu.
Apenas alguns poucos povoados isolados da nação Ainu resistem, espalhados por Hokkaido, com a maior parte da sua população, estimada em 20 mil Ainus (não há números oficiais), incorporada a cidades e vilas ao redor da ilha.
No entanto, os turistas que olharem com atenção poderão ver vestígios de sua cultura em todos os lugares.
Muitos topônimos em Hokkaido têm origem Ainu, como “Sapporo”, que vem das palavras Ainu sat (seco), poro (grande) e pet (rio) devido à sua localização ao redor do Rio Toyohira; ou “Shiretoko” — uma península que se destaca na ponta nordeste de Hokkaido — e pode ser traduzida como “da terra” (siri) e “ponto protuberante” (etuk).
O orgulho Ainu é visível em eventos como o Festival Marimo, realizado anualmente no Lago Akan, e o festival Shakushain, em Shizunai; e em grupos como o The Ainu Art Project, formado por 40 membros que compartilham a cultura Ainu por meio de um banda de rock fusion, arte e artesanato.
Restaurantes como o Kerapirka, em Sapporo, servem comida tradicional Ainu e atuam como um centro para a comunidade local.
Os visitantes podem ir ao Sapporo Pirka Kotan para conhecer o artesanato Ainu, assistir a danças típicas e imaginar como era a vida Ainu antigamente
Ellie Cobb
“E você pode ver os valores Ainu em qualquer ambiente onde o povo Ainu se reúna, seja dentro de suas casas, em um encontro local na cidade ou em um evento. Mas você precisa saber o que está procurando”, diz Gayman, explicando que “generosidade e hospitalidade” são princípios fundamentais Ainu.
“Eles são pessoas alegres”, acrescenta.
Os Ainu também ganharam mais destaque no cenário nacional, com o ativista Kayano Shigeru sendo eleito para o Parlamento japonês em 1994, onde cumpriu cinco mandatos; e com a popular série de mangá Golden Kamuy, que colocou a cultura Ainu sob os holofotes nos últimos anos no país.
“Nos últimos anos, as pessoas ficaram mais interessadas nos Ainu; virou um tema quente no Japão”, afirma Tahara.
“Me deixa orgulhosa saber que as pessoas vão conhecer os Ainu, mas ainda há trabalho a ser feito.”
O avanço mais recente para esta comunidade é o Espaço Simbólico de Harmonia Étnica em Shiraoi, Hokkaido, um novo complexo que está sendo construído pelo governo para propagar a cultura Ainu.
Composto pelo Museu Nacional Ainu, o Parque Nacional da Harmonia Étnica e um memorial, o complexo estava previsto para ser inaugurado em abril de 2020, a tempo dos Jogos Olímpicos de Tóquio, mas foi adiado devido à pandemia de covid-19.
No entanto, muitos especialistas acreditam que o recente reconhecimento da comunidade não é suficiente, opinando que a iniciativa do governo é apenas da boca para fora — e que o projeto de lei para reconhecer o povo Ainu falha em fornecer ao povo indígena japonês direitos claros e fortes.
“Os Ainu ainda não podem pescar seu salmão, e continuam sendo sendo construídas represas que submergem locais sagrados”, afirma Yoshida.
As roupas tradicionais Ainu eram feitas com pele de animal ou de peixe, ou tecidas com casca de árvore ou fibras de urtiga
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“Não há autonomia, tampouco direitos coletivos ou reparações. É apenas uma performance cultural.”
“O reconhecimento é bastante simbólico, mas não tão significativo”, acrescenta ele com uma risada triste, observando que o Japão está muito aquém do padrão internacional no que se refere ao tratamento de povos indígenas.
“É uma situação vergonhosa. Essa é a realidade.”
Enquanto eu seguia Naraki em seu tour pela vila, parecia claro, no entanto, que o interesse público pela cultura Ainu é forte.
Grupos de japoneses e outros turistas, que chegaram de ônibus de Sapporo, disputavam fotos em frente ao pu, a cabana para armazenar alimentos, que fica bem em frente ao poro-ci-set, onde os líderes da aldeia viviam, de modo a vigiar a despensa comunitária da vila.
“Os anciãos resolveriam qualquer disputa na aldeia”, conta Naraki.
Se ninguém chegasse a um acordo, eles discutiriam por três dias e três noites e então tomariam uma decisão.
Ela explicou como a vida dos Ainu estava ligada à terra. As vilas eram construídas ao longo de rios ou à beira-mar, onde a água era abundante e a salvo de desastres naturais. A comida era obtida por meio do forrageamento ou da caça — e contemplava proteínas básicas, incluindo salmão, veado e urso.
Eles colhiam ervas, legumes, verduras, cogumelos e frutos silvestres, como o kitopiro (alho-poró alpino) e o shikerepe (frutos do sobreiro de Amur), jamais colhendo tudo de uma vez e deixando sempre as raízes para que as plantas continuassem a crescer.
A comida era simples — óleo animal, alga marinha e sal eram os únicos condimentos; e milho, o principal grão. As roupas eram confeccionadas com pele de animal ou de peixe, ou tecidas com casca de árvore ou fibra de urtiga.
Viver em harmonia com a natureza é um estilo de vida que muitos Ainu gostariam de voltar a ter.
“No fim das contas, o que eu quero é recuperar um pouco de terra para que possamos caçar e pescar livremente, assim como fazer nossa agricultura tradicional”, diz Tahara.
Um número cada vez maior de Ainus também está começando a reaprender sua língua, que se encontra linguisticamente isolada — e é considerada criticamente ameaçada de extinção pela Unesco.
Quais são suas outras expectativas para o futuro?, pergunto a Tahara.
“Quero dizer ao mundo que o Japão tem povo indígena. As pessoas não sabem”, ela responde.
“Quero que todos nós nos respeitemos, tratemos uns aos outros com respeito e vivamos em paz neste país. E, é claro, gostaria que os ossos de nossos ancestrais fossem devolvidos. Tragam-os de volta às sepulturas de onde foram tirados.”
Fonte: R7