Novo Bento Rodrigues, em Mariana (MG), perdeu as características de comunidade secular para estrutura à la “O Show de Truman”
Uma placa com quase 2 metros de altura indica três direções: atendimento ao morador e posto de informação à direita; mais à frente, credenciamento.
A parada no local é obrigatória para quem deseja visitar o novo Bento Rodrigues, distrito reconstruído para abrigar os moradores que viviam na comunidade de mesmo nome, levada pela lama de rejeitos da mineradora Samarco, em 5 de novembro de 2019.
Às vésperas do aniversário de oito anos da tragédia, que matou 19 pessoas e despejou 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos na natureza, o R7 visitou a comunidade. Na entrada, o procedimento padrão: a confirmação de nome completo, CPF, RG e placa do carro — dados que já haviam sido enviados com antecedência. Uma rotina de condomínio fechado para uma comunidade secular que cresceu livre e rodeada pelo sossego da zona rural.
“Se tem morador aqui, eles não podem barrar ninguém”, questiona José do Nascimento de Jesus, o Zezinho do Bento. O idoso de 78 anos aguarda a casa dele ficar pronta. A presença na comunidade é constante, embora ainda não tenha mudado. “Eles colocam um crachá nos carros dos moradores para identificá-los. No meu não vai colocar”, critica em relação ao controle feito pela Fundação Renova, entidade criada para administrar os trabalhos de reparação dos danos causados pelo rompimento.
Dentro do subdistrito, o clima de monitoramento continua. Após negar a companhia de assessores da fundação para circular pela vizinhança, a reportagem deparou com vigias profissionais em diversos momentos.
Distrito está em obra constante
PABLO NASCIMENTO / 27.10.2023
Eles são de uma empresa de segurança particular contratada pela Renova para atuar dentro da comunidade. Segundo a fundação, o esquema de vigilância privada vai ser adotado enquanto houver obras da instituição no local.
“A Fundação Renova mantém contato com a Prefeitura de Mariana para uma transição da segurança privada para a segurança pública, a partir das entregas ao município”, alega sobre o futuro.
Os vigias ficam em frente às dezenas de casas em construção, aos comércios e aos prédios que abrigarão serviços públicos como Correios, posto de saúde e Guarda Municipal — nenhum destes ainda em funcionamento.
Casas vazias
O reassentamento manteve os nomes das ruas do subdistrito inundado pelo rejeito de minério. A rua São Bento, que dava acesso à comunidade, também é a via de entrada na nova região. Porém a placa de boas-vindas com o emblema da Estrada Real – Circuito do Ouro deu lugar à central de informações. Veja o antes e o depois de Bento Rodrigues:
As casas do Bento antigo, com referências coloniais, portas e janelas ligadas diretamente às ruas e quintais abrigando animais, deram espaço a casarões modernos, todos feitos de alvenaria e com acabamento pomposo.
Aproximadamente 50 famílias estão vivendo no novo Bento. O projeto prevê a construção de 248 imóveis. Destes, 168 estão prontos, incluindo escola e estação de tratamento de água e esgoto, ambos já em funcionamento.
A presença de caminhões e máquinas pesadas é constante. O barulho de canteiro de obras não para: são 2.419 pessoas trabalhando na reconstrução da comunidade atualmente, número bem maior que o de moradores.
Maior parte das casas está vazia
PABLO NASCIMENTO / 27.10.2023
O clima de monitoramento e o grande número de imóveis vazios criam ares de um residencial à moda de O Show de Truman, filme de 1998 que narra a história de um homem que vive em uma cidade criada dentro de um estúdio, em uma realidade inventada para um programa de TV.
“Muita gente já se foi aguardando pelo direito [do reassentamento]. Tem pessoas que estão satisfeitas, outras, não satisfeitas com a estrutura da casa, com a forma como o imóvel está organizado e com a própria característica dos reassentamentos”, enfatiza Lina Anchieta, coordenadora regional do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens).
Zezinho é um dos atingidos que tiveram problema com o imóvel. O idoso já pediu para a Renova trocar quatro vezes a construtora responsável pela casa de dois andares, com acabamento em gesso e porcelanato. “Agora tem uma empresa competente”, afirma.
Os operários estão finalizando o imóvel e consertando falhas já identificadas pelo futuro morador: trincas nas paredes e queda de parte do revestimento de tijolinho marrom são os mais visíveis.
Transformação social
Lina Anchieta chama atenção ainda para as mudanças culturais e sociais que podem afetar os moradores. Entre elas a geração de renda, mesmo com a Renova pagando auxílio aos atingidos.”Antes, Bento Rodrigues era uma comunidade rural. Hoje, é uma comunidade completamente diferente, mudando o modo de vida dessa população”, avalia.
Zezinho questiona estrutura do reassentamento
PABLO NASCIMENTO / 27.10.2023
“O terreno é muito íngreme. Ele não aceita ter o que a gente tinha. Eu já perguntei onde eu vou plantar as minhas mexericas ponkan. E minhas laranjas, hortaliças e melão? Onde eu vou colocar minhas vacas?”, indaga Zezinho.
Um estudo realizado pela Samarco em 2013 descreveu o “grande valor cultural” do distrito, que à época tinha 418 habitantes. A pesquisa indica que a região já era ocupada por indígenas antes da colonização portuguesa.
A comunidade, segundo o levantamento da mineradora, foi fundada em 1697. O surgimento ocorreu quando um cabo chamado Bento Rodrigues desceu a serra à procura de ouro e montou um acampamento ao encontrar abundância do metal precioso.
Agora, a realidade é outra. Os moradores já ouviram pessoas comparando a nova versão do distrito a um condomínio residencial de luxo localizado em Nova Lima, na região metropolitana de Belo Horizonte — que, por sua vez, foi inspirado em outro famoso da Grande São Paulo.
Distrito terá 248 imóveis
DIVULGAÇÃO / RENOVA / ALYSSON BRUNO
“Muita gente fala que nós estamos morando em mansões. Mansão é onde a gente vivia antes. Não importa se a casa nem era rebocada, mas vivíamos no paraíso”, lamenta Zezinho do Bento. Segundo a Renova, os atingidos puderam escolher se gostariam de seguir com a reconstrução do imóvel no reassentamento ou em outro local. Ainda foi dada a eles a opção de comprar e reformar uma casa ou receber a indenização em dinheiro.
“Os projetos das casas das famílias são individualizados. Cada projeto de cada residência é desenvolvido com apoio de arquitetos para cada núcleo familiar. O objetivo é a construção de residências customizadas, com projeto arquitetônico, estrutura e acabamentos escolhidos pelas famílias”, detalhou a fundação sobre o processo de reconstrução.
O comerciante Weberson Barbosa, de 43 anos, conhecido como Ebinho, também quis voltar a viver em Bento Rodrigues. “É uma sensação de que a gente voltou para casa”, detalha.
A escolha para ele foi com o objetivo de ficar próximo dos amigos e familiares. Antigamente, Barbosa vivia na mesma rua em que os irmãos, o pai e outros parentes. “Enquanto a gente estava nos imóveis alugados em Mariana aguardando aqui ficar pronto, nem todos os vizinhos conseguiram ficar próximos. Agora, estamos nos reencontrando”, comemora.
O comércio de Ebinho é monitorando por vigias da Renova
PABLO NASCIMENTO / 27.10.2023
Além de ter tido a casa reconstruída, o comércio dele foi recriado e já está funcionando. É o único aberto atualmente no Novo Bento Rodrigues. Dentre os clientes, os operários da obra ainda são maioria. A segurança é feita por vigias da empresa contratada pela Renova.
A família de Barbosa, no entanto, não está voltando completa. O cunhado dele morreu vítima de um infarto fulminante há um mês. Eles também voltariam a ser vizinhos. “Ontem foi a entrega da chave da casa dele. Então fico pensando no que vai ser de nós amanhã. O que eu puder fazer para quem quiser vir para o Novo Bento Rodrigues eu vou dar o maior apoio. Quem não quiser, eu respeito. Aproveitar o máximo possível com os vizinhos, colegas e família juntos é a melhor coisa que tem. Não há dinheiro que pague”, conclui.
A Renova não deu previsão sobre o tempo para a conclusão das obras. “Os prazos de conclusão dos novos distritos são diretamente influenciados pelo processo coletivo e deliberativo que envolve as famílias. O tempo que cada núcleo familiar precisa para definir e aprovar seu projeto é respeitado”, esclareceu a fundação.
Fonte: R7